CRÂNIO E GAVETAS

24.6.07

É com horror
e alegria
que percebo:

a menina no espelho
sou eu.

25.1.06

cura e culpa

A menininha chorava, e repetia: "eu matei meu cachorro, eu matei meu cachorro".
Comecei a chorar com ela, até perceber
- a morte ia além dos cães, além da infância.
Perguntei a ela, que era eu: "quem mais você matou?"
Desfilavam cadáveres sobre mim,
a culpa ancestral por tudo aquilo.

pedi perdão.
deixei-me perdoar.

desde então ando sorrindo.

24.12.05

antes das palavras

as coisas se separavam da terra pela palavra
uma flor era(antes de ser um nome)lugar de amores e pólen
uma pedra feria sem chamar-se: pontas se escavando em carne.

antes de eu saber
que pedras assim eram,
que flores tal e qual se chamavam,

ela veio,
com seu cheiro de terra e madeira
e seus olhos choviam
e sua boca renovava o gosto das coisas.

ela me lembrava aquele tempo
em que pedras e flores podiam ser uma coisa só,
e eu as ser sem pensar em impossíveis­
- memória de quando fui um pássaro, e uma folha.

ela me ensinou ritos de vida,
enterrou meus mortos,
ouviu minha voz que tremia com o vento,
gritos que nem sabia que estavam ali,
em clausura de séculos,
antigos lamentos e júbilo.

Gritou por mim, e eu soube:
ela me lembrava o mundo antes de ter nome.

12.10.05

na insônia me coloco,
pernas entrelaçadas a corpo estranho.
amanheço dolorida, cabeça e coração.
Trabalho a ser feito,
vida a ser entendida,
café tomado em silêncio.
E só.

9.10.05

estar

o que fazer quando se sente saudades?
fitar a sala vazia até doerem os olhos,
abraçar os cães e os gatos,
tomando cuidado pra não chorar.
Aceitar a inconstância dos mares
e perceber que se fossem constantes
não seriam o que são.
Esperar tempestades
contar os segundos entre raios e seus trovões,
andar quilômetros ouvindo música sem me lembrar
e aí de repente lembrar:

Estou só,
como em nascimento e morte.

21.9.05

eu não sei beijar demorado.

nem sei fazer nada demorado.

a não ser esquecer

(mas isso nem sei também)

18.9.05

??

passei tempo sem escrever porque tinha perdido a voz.

achei:

precisava só de tristezas

(e amor)

metonimia

sei que amo
em pedaços.

boca,
mãos,
olhos

(que se fecham
quase sempre
interrogando)

assim.

metonímias:
partes pelo todo.

14.9.05

morte

Uma noite dessas eu morri.
Subi escadarias imensas, em pisos de mármore branco.
Torres altíssimas e aviões que decolavam.
Não levava bagagem nenhuma.
Prestes a embarcar, percebi:
Morri nada!

E desci correndo as escadas pra voltar a viver.

7.9.05

aniversário

Eu tento festejar,
alegrar o coração vazio:
não sinto nada.

só cansaço,
vontade de chorar,
esperança de sóis.

Muito azul há em mim,
que sei.
Só preciso encontrar.

4.9.05

fim

eu encerro
dignamente
o que foi.

deixo o caminho aberto
para quem vier.

Já veio.
talvez,
e eu ainda entorpecida,
arranhada,
em ruína
(antiga, como disse)
nem percebi.

Vem.
Agora eu posso.

3.9.05

eu sinto a dor como farpas
não como manto,
não como noite que vem.
qual o problema se estilhaços pequenos
não sangram a ponto de esvair-me ?

se não sou dada a hemorragias,
não quer dizer que não dói.

30.8.05

dor

Os gatos me rodeiam inquisidores: onde?
.

olho para a vida como flor .
e seiva em vez de sangue corresse em mim.
contento-me em existir
sem esperanças , memórias
e desejos.

aprendi que assim dói menos.
.

não preciso de mais que sol
pra refazer o mundo :
o imenso deleite de dias assim,
palavras amorosas,
os gatos no meu colo,
amigos que renascem.

silêncio dentro e fora de mim.
.

não nasci para maremotos.
quero serenas noites,
dias pacatos,
a certeza de que amanhã virá
em paz.

28.8.05

No eixo, sempre.

guerreiros enfileirados,
lanças agudas,
escudos brilhantes.
em guarda, protegem o que em mim
é ferida e sentido.
Nem grito se faz necessário:
marcham por si
abrem caminhos.

Meu coração passa ileso.

.

Esburacaram-me a noite.
Pelas frestas,
vejo sol.

.

Gosto de ser terra.
Gosto de ter raízes
e crescer forte
(como eu nem sabia que era)

Gosto dos meus quadris largos
do meu peito
dos meus pés,
desde pequena,
plantados no chão.

Forneço o necessário,
fruta e flor

Mas, se pássaros voam,
essa é a maravilha dos deuses.

16.8.05

tempo

Eu demoro muito para terminar um livro para compreender as pedras para analisar pássaros para ressuscitar sentidos para digerir os mortos para caminhar ao centro para cumprir compromissos para conversar com gatos para dormir em paz para reaprender os beijos para perdoar.
No fim dá tudo certo.

Esqueço a lentidão de mim.

8.8.05

comparações

eu diferente de mim:
eu agora melhor que pela manhã
a imagem de mim melhor que eu de verdade
o discurso maior que a sensação
as palavras mais densas que o corpo
os sentidos maiores que os referentes
o desejo mais espesso que o controle
toda noite mais longa que o dia.

eu acredito naquilo que invento.
problema,
ou solução?

*

eu queria fazer um poema de amor, daqueles bem exagerados, que dissesse a tormenta que vai aqui dentro.
dias difíceis.
silêncio às vezes me traduz melhor.

*

(ouvi hoje sobre minha inacessibilidade: não me entrego. Nunca.
Arquétipo da Virgem.
Prefiro apenas achar que entrego o que há a ser entregue,
O que pode ser entregue.
O resto é meu. E só.
Que não me peçam pra ser mais que sou.)

*


O que tenho pensado:
flores , borboletas.
e pesticidas para insetos
daninhos.

5.8.05

14 aulas

Assim: 14 aulas no dia. E sabe o que é mais estranho? Eu gosto.

Porque me alegra ver a cara deles e lembrar-me de mim mesma.
Porque gosto de contrair o estômago e sentir minha voz mais alta do que é.
Porque gosto de ouvir os murmúrios ao fundo, as risadas descontroladas.
Porque gosto de rir das coisas inócuas.
Porque gosto das diferenças todas. E da profunda semelhança entre nós.
Porque quando estou ali, sinto que há uma bolha em minha volta, e que posso ser leve.
E não me sinto menor, como em outras situações.
Porque em minhas veias há sangue, e o sinto pulsar enquanto as palavras se mostram.
Porque há beleza em ver as coisas todas se formando. E idéias que se desenham tão lindas.

Ontem a menina respondeu a uma questão na aula, daquelas que a gente faz por retórica, assim: "Ah, o início de Memórias Póstumas de Brás Cubas é um excelente exemplo de metalinguagem. Um clássico". E aquilo me foi uma mão apertando o peito, porque quando a conheci ela era uma menininha de 14 anos , ainda vacilante. Leu Memórias Póstumas comigo, na sala, no ano passado. Ao ouvir minhas palavras, que agora eram dela, tão justamente colocadas, tão adequadas, pensei que parte daquilo havia vindo de mim. Pois às vezes me esqueço do peso, e me coloco num lugar estranho de não ser. Mas ali eu era. Apenas. E uma aluna que sabia que aquele começo era um clássico. Ela saberia isso, algum dia, de qualquer forma. Mas o soube através de mim.
Gosto de ser um instrumento. Quisera ser aquele de que fala São Francisco de Assis: um instrumento que leve o bom onde só há o ruim. Ainda vou ser. Minha guerra pessoal.

3.8.05

metonímia

eu existo
em pedaços.

boca que diz amor
mãos que dizem desejo
olhos que dizem.

o que em mim é parte,
sou .

cirurgia

Abriram-me o crânio,
parte posterior.
Dali tiraram três metros de medo
alguns quilos de incertezas
litros e litros de choro contido.

Cabeça mais leve,
agora posso até dançar.

trabalho

Eu me sento.
Pilha de papéis à minha frente.
Sobre eles,
letras mal desenhadas,
argumentos tolamente delineados,
reflexões que percebo inúteis.
(as minhas próprias, talvez)
Eu, tinta vermelha nas mãos,
tento.

Quase choro se não consigo.

Mais tarde,
fazer perguntas.
Todas sem resposta.

É o que faço nas minhas tardes.