CRÂNIO E GAVETAS

25.6.05

Peixe, eu?

Eu não tenho respostas possíveis à violência das ondas.
Eu não entendo
a mim , ao mar,
ao mundo que parece extraviar-me.
.
Se não vôo,
cavo buracos imensos .
Neles encontro ouro,
pedras preciosas, grutas subterrãneas.
Entro no reino de Plutão:
O peso daquilo que sou,
E não quero deixar de ser.
Não peça a uma macieira para que ela dê pêssegos.
Aceite-a como macieira,
experimente seus frutos,
esqueça o gosto daquilo que suas raízes,
suas folhas,
seus galhos
não farão jamais.
Porque não é de sua natureza.
Uma semente sabe o seu vir-a ser.
Eu sei o meu.
Saiba.
.
Ou então:
.
não sou concha,
peixe, caranguejo,
veleiro, tronco que flutua.
porque sou tigre,
raiz, pedra, cachorro,
gato, casa:

Coisas que a força das águas
arrasta e mata.
.
Gosto de ser o lugar para onde se volta.
Gosto de ser o chão que te impulsiona o salto.
E a cama macia onde se deita.
Se preferir a loucura,
não a tenho.
Macieira, lembra?
Sou a ordem, não o caos.
E você é meu espelho: refletindo o que não sou -
meu cérebro ao contrário.
.
Posso apagar todas as palavras que já disse, e trocá-las pelas três que são só verdade, e não exercicios verbais.
Eu amo você.
Ponto.

19.6.05

Cânfora e Adélia Prado

Cânfora. Pequenos cristais que tiram de mim o que não é meu. E junto à água levam embora minha tristeza.
Porque ainda preciso aprender a diferenciar o que vem de dentro e o que vem de fora. Não não quero mais ficar assim, como uma esponja que limpa a vida alheia sujando a minha própria.
.
Preciso de palavras como preciso de ar. E quando elas vêm, tudo se ilumina. É tão fácil: basta estar comigo, que eu não morro.
.
Palavras dela, Adélia:
.
O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge o meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

15.6.05

cortes

eu me corto e vejo estilhaços de mim entre poças de sangue. Eu me corto em pensamentos pra tentar me salvar . Mas e os milhares de cães famintos que se aproximam assustadoramente e continuam a me rasgar? Alimento-os?
Por piedade de mim, não quero mais.
.
O que querem?
Sorrisos?
Eu os tenho de sobra.
No entanto, dentro é noite.
Nada se vê,
nada se sente.
Apenas uma lua imensa
e luzes na varanda.

Como dói.
.
Aceita meu cansaço.
Peço:
cuida de mim?
não quero ser a rocha forte
que tudo sustenta,
de onde se vêem montes e oceanos -
eu apenas,
corpo,
alma em pedaços.
.
o cinzeiro cheio não nega: ainda há noite pela frente.

13.6.05

pedra

eu sou pedra
tenho pontas
e corto.

tempo e amor
fazem de mim
apenas seixo.

nunca pluma.

(porque não se altera a matéria de se fazem os seres)

12.6.05

Dragão

Eu queria ser mais doce, delicada, amorosa.
Mas minhas patas de dragão esmagam o que há pela frente, línguas de fogo varrendo o que há. Palavras de amor que queimam tudo.
Mas dragões podem ter asas, não?
E seu vôo desajeitado ainda pode levar a castelos lindos, nuvens e entardeceres.
Podem também desabar. Daí, a história nem tem final feliz.
.
Por que dragão tentando, e não pássaro sendo?
.
Queria ser a métrica perfeita pras suas rimas.
Você me faz ter vontade de mares, rios, lagos.
(deserto é o que só pareço ser)
Você me faz ter vontade de ser o que eu não sou.
E isso me obriga a agarrar-me a mim, pra não me perder.
Pra ainda conseguir me reconhecer.
E amar do meu jeito,
que é o único que sei.
Por enquanto.
Entenda: é o que posso ser agora - dragão que tenta.
Não há correntes para ele.
.
Existe um chão: a minha história com você. Sobre ele construo a vida.

11.6.05

Deixar ir embora

Se chega assim, ferida, vertendo sangue no olhar, talvez seja porque falte minha boca, meu ar, as palavras que posso sussurrar em seu ouvido enquanto chora. Um peixe mesmo. E sem a água toda que expande seu peito é capaz de sufocar. Aprendo agora a deixar que chova, sem exigir sertão onde só há rios (eu quero é essa lama que gera, que cria, que toma formas estranhas de bichos e plantas e santos e flores e coisas sem razão).
Eu aprendi a amar assim: deixando ir, para que possa voltar. Um dia, quem sabe, sem sangue em palavras.
*
Cena possível para peça banal que jamais será escrita. Mas vivida, sim (porque, infelizmente, eu não sei dizer de outra forma)
"Você largaria tudo pra ir embora comigo??"
"Sim"
"Escolas, trabalho, casa, bichos, tudo?"
"Tudo"
"Moscou? Lisboa? Paris? Londres? O que você quer?"
"Que você diga que me ama. Só"
"Eu te amo"
"Eu também"
"Você é lacônica"
"Aham.Boa noite"
"Boa noite"
*
*
*
Estou feliz como não estava há séculos. Desabituar-se da alegria é bom, porque ela vem em explosões. Como agora: barulhos na cozinha que me fazem sorrir.

9.6.05

banalidade

Verso mais lindo: "Conheci a beleza que não morre e fiquei triste". A experiência da banalidade torna-se mais angustiante quando a gente já viveu o sublime, ainda que apenas por alguns minutos. Penso tanto que, mais uma vez, minha cabeça dói.
Baudelaire: é necessário atravessar o inferno para se chegar ao paraíso. Então caminho entre chamas, afogada em provas, livros e dores.

8.6.05

procuro/evito

coisas que procuro:

amor
amor
amor

humor.

coisas que evito:

vaidade
vaidade
vaidade

ah,
e arrogância.

7.6.05

Sal

1.Eu gosto daquela história bíblica das estátuas de sal. Nunca entendi por que não mármore ou granito, e sim sal. Mas quando olho, sinto muitas dessas estátuas - sal em excesso é amargo. E animais dão extensas lambidas em pedras de sal, que lentamente derrete. Sobra nada, a terra amarelada sobre a qual nada mais vai nascer. Então: algumas pessoas são estátuas de sal: fixas, esbranquiçadas, amargas. Provocam sede enquanto vão se desmanchando sob as línguas dos animais, sob chuva e sol. Nem percebem que ali não há mais alma. E que vida alguma será possível naquele chão.
2. Ainda fico raivosa. Ainda tenho vontade de gritar. Ainda sei dos desejos de morte. Ainda me estarrece a pequenez da mente. Ainda sinto medos. Ainda conheço o escuro - e a falta de sono. Mas agora olho pra luz.Ou tento.
3. Vi um programa sobre trançados em palha. Fiquei envergonhada de ser mulher urbana intelectual (!!) e branca. Um verme. Queria , por alguns instantes, ter aquilo tudo na alma, a mesma firmeza, a mesma convicção - as palavras certeiras : "essa casa eu estou construindo com o artesanato, e a ajuda do meu filho". E um sorriso de poucos dentes ao sol. (seria mais feliz assim, sem letras, sem investigações? só corpo e instinto?)
4. Eu senti, na sexta, a morte nas mãos. Mas achei, pretensiosamente, que eu seria capaz de salvar aquela vidinha que manchava de vermelho o punho do agasalho. A Natureza disse não. E eu apenas fechei os olhos e esperei. Sem lágrimas. Agradecida, no fim, pela lição sobre o meu tamanho.

5.6.05

Dor de cabeça

Não há como descrever algumas coisas. Esta dor de cabeça, por exemplo, que me faz desejar um machado que rachasse meu crânio e desmantelasse as veias e músculos que fazem meu domingo ser gasto entre a cama e o um trabalho assumido pela incapacidade de dizer não.
Não gosto de dizer nãos. Afinal, tudo começou com um sim, dizia Clarice, única pessoa que eu desejaria ter conhecido, e fumado um cigarro e tomado um café às quatro horas da manhã.
O problema é que dizer sim para algumas coisas é dizer não para outras, que às vezes podem ser mais importantes. Às vezes. Ou quase sempre, não sei avaliar corretamente a importância de tudo na minha vida. Trabalho? Amor? Desejo?
E o pior é que um dos meus grandes prazeres é fazer listas, como em High Fidelity: as cinco maiores bandas da minha história pessoal; os dez piores poemas-considerados-bons da literatura universal; oito livros que eu levaria a uma viagem ao Zimbabwe...
Mas quando a questão é enumerar prioridades na minha vida, esqueço-me dos números e misturo tudo.
E fico depois assim, com esta dor de cabeça que anuncia tempestades e um aperto no coração que sinto todo domingo.
(Amanhã vou a São Paulo. Corrói-me a ansiedade, porque vou conhecer pessoas que podem ser importantes um dia. Não o são ainda, mas o vislumbre de possibilidades outras além das trinta e tantas aulas semanais me alegra e angustia ao mesmo tempo. Tenho que aprender a dizer sim às coisas que amo. E aceitar desafios de começar do nada e aprender coisas que não sei.Pra ver se essa sensação de farsa se confirma ou se dissipa de vez.)

2.6.05

Portas de Alice

A questão toda se coloca como aquelas charadas em que há duas portas e eu, tal Alice ou qualquer personagem infantil, tenho que escolher qual das duas vou abrir. A chance é apenas uma, não há possibilidade de dar uma espiada no que há por trás delas. Mesmo porque ao que parece tudo é escuro e tenebroso e bastante diferente da claridade aqui de fora. O problema é que o terreno mais solar anda movediço e a questão das portas se torna impositiva: qual das duas? No fundo eu sei que ambas me levarão ao caos e a coisas que não quero de forma alguma viver. Mas tenho que escolher: você prefere a forca ou a guilhotina, babe? E meu coração treme e eu me apavoro, porque não acredito nas tais portas, porque sei que elas dão em nada, porque muitas escolhas sérias eu já fiz na vida, e essa é apenas um joguinho estúpido que andam fazendo tentando me convencer que sem as portas não há caminho, não há possibilidades. Tento vislumbrar um trajeto alternativo, por trás , contornando com suavidade a imposição, procurando plantinhas e bichos e casinha com quintal e chaminé. Esbarro em medos, fragilidades, e ainda assim tento olhar o mundo e minha vida de forma alegre, colorida, doce.
Mas telefonemas cheios de lágrimas e gritos e dor só me empurram adiante. E repetem a pergunta: forca ou guilhotina? Meu pescoço agradece se eu puder não dar a resposta.

Esfinges

O que aconteceria num fatídico encontro entre duas esfinges? Será que ambas se estraçalhariam com as garras de leão? Ou brincariam como gatos, e se beijariam , línguas ávidas?
Porque, entenda, também posso ser esfinge e não Édipo, também há pedaços espalhados de mim e também caminho insegura em cordas bambas - só que as minhas não são de sonho, são de certezas que se estilhaçam com palavras que vêm por um fio.
E olho tudo, mas não quero escolher metades, porque tenho fome de inteirezas: então junto gatos, cães, ossos, sangue, lágrimas, veias, músculos, pele, sapatilhas de cristal, teias de aranha, peixes, virgens, ratos e serpentes, e faço a massa viva de que me alimento a cada dia.
Transformo tudo nisto: amor. e só. Precisa mais?