CRÂNIO E GAVETAS

30.8.05

dor

Os gatos me rodeiam inquisidores: onde?
.

olho para a vida como flor .
e seiva em vez de sangue corresse em mim.
contento-me em existir
sem esperanças , memórias
e desejos.

aprendi que assim dói menos.
.

não preciso de mais que sol
pra refazer o mundo :
o imenso deleite de dias assim,
palavras amorosas,
os gatos no meu colo,
amigos que renascem.

silêncio dentro e fora de mim.
.

não nasci para maremotos.
quero serenas noites,
dias pacatos,
a certeza de que amanhã virá
em paz.

28.8.05

No eixo, sempre.

guerreiros enfileirados,
lanças agudas,
escudos brilhantes.
em guarda, protegem o que em mim
é ferida e sentido.
Nem grito se faz necessário:
marcham por si
abrem caminhos.

Meu coração passa ileso.

.

Esburacaram-me a noite.
Pelas frestas,
vejo sol.

.

Gosto de ser terra.
Gosto de ter raízes
e crescer forte
(como eu nem sabia que era)

Gosto dos meus quadris largos
do meu peito
dos meus pés,
desde pequena,
plantados no chão.

Forneço o necessário,
fruta e flor

Mas, se pássaros voam,
essa é a maravilha dos deuses.

16.8.05

tempo

Eu demoro muito para terminar um livro para compreender as pedras para analisar pássaros para ressuscitar sentidos para digerir os mortos para caminhar ao centro para cumprir compromissos para conversar com gatos para dormir em paz para reaprender os beijos para perdoar.
No fim dá tudo certo.

Esqueço a lentidão de mim.

8.8.05

comparações

eu diferente de mim:
eu agora melhor que pela manhã
a imagem de mim melhor que eu de verdade
o discurso maior que a sensação
as palavras mais densas que o corpo
os sentidos maiores que os referentes
o desejo mais espesso que o controle
toda noite mais longa que o dia.

eu acredito naquilo que invento.
problema,
ou solução?

*

eu queria fazer um poema de amor, daqueles bem exagerados, que dissesse a tormenta que vai aqui dentro.
dias difíceis.
silêncio às vezes me traduz melhor.

*

(ouvi hoje sobre minha inacessibilidade: não me entrego. Nunca.
Arquétipo da Virgem.
Prefiro apenas achar que entrego o que há a ser entregue,
O que pode ser entregue.
O resto é meu. E só.
Que não me peçam pra ser mais que sou.)

*


O que tenho pensado:
flores , borboletas.
e pesticidas para insetos
daninhos.

5.8.05

14 aulas

Assim: 14 aulas no dia. E sabe o que é mais estranho? Eu gosto.

Porque me alegra ver a cara deles e lembrar-me de mim mesma.
Porque gosto de contrair o estômago e sentir minha voz mais alta do que é.
Porque gosto de ouvir os murmúrios ao fundo, as risadas descontroladas.
Porque gosto de rir das coisas inócuas.
Porque gosto das diferenças todas. E da profunda semelhança entre nós.
Porque quando estou ali, sinto que há uma bolha em minha volta, e que posso ser leve.
E não me sinto menor, como em outras situações.
Porque em minhas veias há sangue, e o sinto pulsar enquanto as palavras se mostram.
Porque há beleza em ver as coisas todas se formando. E idéias que se desenham tão lindas.

Ontem a menina respondeu a uma questão na aula, daquelas que a gente faz por retórica, assim: "Ah, o início de Memórias Póstumas de Brás Cubas é um excelente exemplo de metalinguagem. Um clássico". E aquilo me foi uma mão apertando o peito, porque quando a conheci ela era uma menininha de 14 anos , ainda vacilante. Leu Memórias Póstumas comigo, na sala, no ano passado. Ao ouvir minhas palavras, que agora eram dela, tão justamente colocadas, tão adequadas, pensei que parte daquilo havia vindo de mim. Pois às vezes me esqueço do peso, e me coloco num lugar estranho de não ser. Mas ali eu era. Apenas. E uma aluna que sabia que aquele começo era um clássico. Ela saberia isso, algum dia, de qualquer forma. Mas o soube através de mim.
Gosto de ser um instrumento. Quisera ser aquele de que fala São Francisco de Assis: um instrumento que leve o bom onde só há o ruim. Ainda vou ser. Minha guerra pessoal.

3.8.05

metonímia

eu existo
em pedaços.

boca que diz amor
mãos que dizem desejo
olhos que dizem.

o que em mim é parte,
sou .

cirurgia

Abriram-me o crânio,
parte posterior.
Dali tiraram três metros de medo
alguns quilos de incertezas
litros e litros de choro contido.

Cabeça mais leve,
agora posso até dançar.

trabalho

Eu me sento.
Pilha de papéis à minha frente.
Sobre eles,
letras mal desenhadas,
argumentos tolamente delineados,
reflexões que percebo inúteis.
(as minhas próprias, talvez)
Eu, tinta vermelha nas mãos,
tento.

Quase choro se não consigo.

Mais tarde,
fazer perguntas.
Todas sem resposta.

É o que faço nas minhas tardes.